quinta-feira, 7 de abril de 2016

O CRIME DE ANA DAS DORES


Este conto, a publicar no 4º volume de Contos de Amor e Drama (já estão publicados dois volumes), respeita a uma passagem da primeira versão do livro  "O Padre Costa de Trancoso", que retirei (assim como outras), para dar à obra uma versão mais "soft" da vida aventurosa do sacerdote que fez gerar 299 filhos em 53 mulheres. Procurei, mesmo assim, deixar uma leitura suave, para todas as idades, dando vazão à imaginação e ao enquadramento da figura entre a lenda e a realidade.
Por isso, apenas reproduzo a seguir a primeira das sete páginas deste conto (o mais pequeno entre todos os que estão neste volume e escrito sob o famigerado Novo Acordo Ortográfico).


Manhã cedo, nesse dia de junho de 1468, quando o padre Costa de Trancoso penetrou na igreja, encontrou a lamparina de azeite que alumiava a Virgem tombada no chão da laje e o seu conteúdo derramado. Quedou imóvel por um instante, olhando fixamente para os estragos. Alguém tinha deixado uma porta aberta e provavelmente um gato tinha ido lamber o azeite da lamparina. De resto, não parecia existir o argumento do roubo, pois o azeite encontrava-se derramado e desperdiçado no chão.
E por aí parou com as suas suspeitas, decidido a mandar repor a lamparina acesa, quando um homem do povo entrou no templo e se acercou dele. O padre reconheceu o recém-chegado como sendo Fernão Pardo, o alquilador, alugador de bestas de carga, que se encarregava da venda dos burros na feira. Era conhecido por muitos hábitos, uns bons e outros maus, sendo que um dos piores era a sua coscuvilhice e propensa esdrúxula para a mentira.
— Vossa Reverência sabe o que se passou aqui na igreja?— inquiriu, retorcendo o barrete nas mãos.
— Não.
— Pois então eu digo. O caso é muito sério. Eu vi com estes que a terra há de comer, por mal dos meus pecados; antes não tivesse visto.
— E o que viste, homem?
— Pois eu vi e sei quem foi. Não sei o nome, mas sei quem foi.
A ideia de saber quem tinha derrubado a lamparina do azeite – e decerto seria disso que o labrego ia falar – deixou o padre à beira de descobrir o mistério.
— E sabes quem foi que derrubou a lamparina do azeite?— inquiriu. — Dize!
— Que lamparina de azeite? Eu não sei nada sobre a lamparina!...
— Ó miserável sandeu! Por que me hás de enganar?
— Não vos enganei— exclamou confrangido o pobre homem.
— Dizem-me que és um mentiroso e um maldizente, mas não vou tolerar que me venhas para aqui com patranhas.
— Saiba Vossa Reverência que não vos conto patranhas nem mentiras. Eu vi quem roubou o Menino.
Ao mesmo tempo que dizia isto, apontava para a imagem da Virgem. O padre Costa seguiu a indicação e, de facto, reparou, com estupefação, que a imagem do Filho da Virgem não se encontrava no seu regaço, como sempre lá esteve desde que ele se lembrava.
O alquilador prosseguiu contando que tinha visto uma mulher entrar na igreja e aproximar-se do altar da Virgem e a vira sair com um volume no regaço. Perguntou-lhe se levava ali alguma coisa tirada do sagrado templo, e ela negou, abrindo um pouco a véstia para que ele visse um toro de couve. O padre quis saber o nome da mulher e o alquilador prometeu-lhe averiguar, pois sabia onde ela morava, mas não a sua graça e quem era.

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