Já tenho um projecto de capa, que é este acima, para o meu primeiro policial. Aproveitei o desenho de uma mulher com uma arma, de outra publicação policial americana, e adaptei-a como pastiche. O resto compus de acordo com o enredo.
Os primeiros parágrafos vão a seguir...
UM
Se
queres o cão, aceita as pulgas
(provérbio
espanhol)
Fatal como o vinho que condenou
ao amor eterno Tristão e Isolda, a minha paixão pelas mulheres tem feito com
que jamais lhes venha a pregar uma partida como essa de as levar ao altar. Nas
minhas andanças de solteirão convicto, tenho feito amizades por aí a fora.
Tornei-me amantíssimo de jovens independentes, de certas malcasadas, dos
maridos condescendentes e do meu anjo da guarda. Tenho, com todos eles,
sacrossantas alianças: por uns, enorme afecto; por outros, solidariedade; por
todos, o desejo de que sejam abençoados pelos deuses.
Não é meu timbre confidenciar os
casos que tenho tido. Não confio segredos deste teor aos pares do meu sexo, por
seguir a máxima de um avô malandro e avisado: todo o meu melhor amigo pode ter
um melhor amigo que é meu inimigo.
Estava precisamente a pensar que
seria agradável ficar naquela manhã em vale de lençóis, meditando nos prós e
nos contras de alguns casos em que me tinha envolvido, sobretudo graças às
candidatas do sexo oposto. Pelos
números verdes do relógio digital verifiquei estar cerca de meia hora atrasado
em relação ao costume. O único efeito que isso produziu em mim foi recordar-me
que mais um dia de trabalho me esperava, embora na senhora minha cabeça
continuasse a partitura de protesto dos carrilhões de Mafra.
Uma incipiente interrogação
médica era necessário colocar: estaria com gripe? Podia ser que sim, podia ser
que não, mas a verdade é que eu me encontrava, naquela altura do campeonato,
interessadíssimo em receber os meus honorários por inteiro, pagos em tempo e
devidas horas pela direcção-geral dos impostos, a quem servia. Era necessário
partir para a luta, incomodando os contribuintes relapsos, os contabilistas
manhosos dos contribuintes relapsos e saltar por cima daquela debilidade
física.
Fazia um pouco de frio em
Lisboa. Olhei através da janela e verifiquei que chovia com intensidade.
Encolhi os ombros e resolvi adoptar o conselho que o general Tchiukov deu aos
seus soldados quando os nazistas cercaram Estalinegrado — paciência e ironia.
Na noite anterior tinha ido à
ópera. Não se tratava de programa do meu agrado, mas nem tudo o que somos
obrigados a fazer pode merecer igualmente a nossa estima. Detesto ópera. Mas
caiu-me como mosca na sopa um convite de duas raparigas e de um ex-colega da
minha licenciatura do ISEG – sim, de Economia, porque para além do Direito,
optei por mais um "canudo" - para assistirmos todos a uma representação de Don
Giovanni, de Mozart. Depois do dueto em cena, escrito na papelosa como La Ci Darem La Mano, em que o D.Juan
seduz a bela Zerlina, tudo aquilo em pleno dia do casamento dela com o pobre
Masetto, senti que, pela noite dentro, essa iniciativa ia caber a mim e ao
Geraldo, ocasional anfitrião. Tanto assim foi que, a pretexto de secarmos as
lágrimas do drama, nos acolhemos no apartamento dele.
(...)
Sou funcionário do fisco, mais
propriamente da inspecção tributária, nível 2, antes designado por perito de
fiscalização tributária de primeira classe. Trabalho duro, contra uns ou contra
todos, em prol da recolha de receitas que permitem ao Estado a capacidade de
exercer as suas funções sociais, redistribuição de riqueza, controle de
soberania e blá-blá-blá… Em suma, pratico aquilo que me é pedido na função:
combater a economia não registada e a fraude; quantificar o que não é
observável ao olho do comum dos mortais sem preparação própria nesta área;
confrontar resultados e contra-resultados de exercício para fazer extrapolações
matemáticas; passar a pente fino contabilidades e documentos arquivados em
sítios onde não lembraria ao diabo e neles detectar facturação, subfacturação, sobrefacturação
e custos de exercício; detectar e esventrar à lupa as empresas fantasma e
operações fictícias para embolsar o IVA; farejar a marosca dos contabilistas
matreiros e a ilegalidade das sucessões artificiais de compras e vendas
intercomunitárias para e entre sítios onde o mesmo diabo perdeu as botas. Ao
fim e ao cabo, já toda a gente sabe ao que andamos, eu e os meus colegas, e
pouca gente apreciará o nosso esforço. Até a designação com que nos brindam –
fisco – tem algo que se lhe diga. Fisco significa cesto e cesto pode
lembrar-nos aqueles cabazes de vime, fundos quanto bastam para recolher as
contribuições e os impostos. Podem ser fundos e não terem fundo, mas esse
pormenor é da competência e da manha de quem governa. Era em cestos dessa
natureza, chamados fiscus, que os
romanos usavam para a liquidação dos impostos, provavelmente com outras artes
de fazer contas à matéria colectável e com a incongruente falta de equidade que
percorreu a arte de tributar até aos nossos dias.