Dando continuidade à exposição de algumas entradas da enciclopédia anunciada em publicação anterior, eis mais algumas, escolhidas ao acaso.
ALIMENTOS. Embora este mesmo assunto seja abordado na entrada
“Culinária”, para abrir o apetite não me privo de o cozinhar aqui.
Demonologistas, inquisidores e alguns enciclopedistas,
queimaram as meninges para descobrirem o que comiam as bruxas fora da vista
desarmada. Quando elas confessavam práticas e comeres aberrantes, isso era a
maior parte das vezes devido à tortura dos inquisidores, ávidos para obter
confissões terríveis e assim lhes facilitar a redacção das sentenças. Dizer que
elas tinham por gastronomia qualquer mistela parecida com o menu de um cafre, é
pura especulação.
Serpentes, sapos, gafanhotos e até morcegos, não são
de todo ingredientes, que eu acredite; mais certo, bons nacos de presunto e
toucinho, vaca e carneiro assados, tudo regado com vinho do melhor, mesmo que
surripiado nas adegas da vizinhança.
Outros estudiosos, aventam que eram em tempos vegetarianas,
alimentação com ausência de carne, como era hábito em alguns costumes pagãos.
Terão então as bruxas apetência pela soja, tofu, algas,
castanhas e folhas de alface?
Esta teoria não pega, pois há quem jure ter visto uma
bruxa a passar ao estreito, num restaurante da especialidade, uma garoupa, duas
cavalas, uma embalagem de delícias do mar ainda congeladas e um pires de “jaquinzinhos”
sem arrotar.
Nas assembleias, o bode e as bruxas não se privam do
estendal no final da sessão, onde não faltam os garrafões de vinho e presunto,
nem tão pouco o sacramental cafezinho servido do termo e um cálice de
aguardente, da rija, uma vez que não há brigadas de trânsito por onde circulam
as vassouras.
CAÇA ÀS
BRUXAS. Quando se fala em caça às bruxas
sem se referir a políticos e à política, alude-se à ignominiosa perseguição
religiosa e social que começou no final da Idade Média e atingiu o seu apogeu
na Idade Moderna, por se achar que as bruxas eram tidas como satânicas. Naquela
paranóia instituída, queimavam então as pobres mulheres em fogueiras para as
castigar e “purificar”.
A caça às bruxas, tal como outros tipos de caça com o
seu “Manual do Bom Caçador” ou “O Manual do Caçador Furtivo”, possuía também um
livro de instruções do género faça você mesmo, se puder. Tem por título Malleus Maleficarum, ou "Martelo
das Feiticeiras", publicado em 1486, originalmente escrita em latim pelos
monges dominicanos Kramer e Sprenger.
Nesta obra, os capítulos estão recheados de assuntos e
questões como estas: se os íncubos e os súcubos podem conceber crianças;
se as bruxas copulam com demónios; se as
bruxas que são parteiras matam de diferentes maneiras as crianças concebidas no
útero, e tentam um aborto, ou se não fazem isso, oferecem aos demónios os recém-nascidos,
entre outros assuntos de semelhante jaez.
Se em vez daquela trapalhada, os fradinhos rotundos,
ardilosos e implacáveis, tivessem escrito uma enciclopédia alegre ter-se-ia
poupado muitas vidas e, com a legalidade da profissão, muita receita fiscal
entraria nos cofres do erário público. Já não conto que me poupariam muito
trabalho, pois para fazer esta edição bastar-me-ia chegar à net, copiar e colar.
O primor desta obra “ Martelo das Feiticeiras” teve direito
a bula de Inocêncio VIII, “bispo, servo
dos servos de Deus, para eterna memória”.
Se não queimaram aquela tralha toda, ainda restam por
aí alguns exemplares, mormente traduzidos e dispostos para downloads na internet.
CASAMENTO. Agora é que são elas! Sobre o casamento há tantas
superstições que, se fossem levadas a legislação, havia por lá mais artigos do
que no Código Civil (e este leva qualquer coisa acima dos dois mil e
trezentos). Por isso, estão a ver, pela rama é que eu vou passar este verbete,
uma vez que não pretendo uma enciclopédia alegre de solteiros, casados e
divorciados.
Vejamos, só para mata-bicho.
Quer casar em Maio? Marcou a boda para um sábado,
principalmente se neste dia decorre o aniversário de um dos noivos? Não o faça.
Prefira casar a uma quarta-feira, pois é a superstição que o recomenda e o
melhor mês é Junho, por ser dedicado a Juno, fiel esposa de Júpiter. Outro
conselho: deve ser o noivo a fechar a porta do quarto na noite de núpcias.
Victor Hugo chegou a afirmar que o casamento é um
romance no qual o herói morre no primeiro capítulo.
Começando do princípio, diz a crença que não se deve
varrer os sapatos e os pés dos jovens solteiros, pois é sinal de que não
casarão e que, se uma pessoa solteira ouvir uma vaca berrar, deve meter uma das
mãos na algibeira, para assim vir a casar cedo.
Acertado o casório, pois o namoro não deve ser prolongado
como o do Sapo Cocas e da Miss Piggy, a escolha do vestido é também importante,
segundo a crença. Para já, deve ser de seda, porquanto o cetim é considerado
aziago, enquanto o veludo pressagia pobreza. O véu foi criado para evitar que
os espíritos malignos cobicem a noiva. Se não sabiam esta, ficam a saber.
O cortejo nupcial deve seguir para a igreja por uma
rua e regressar por outra, porque é de mau agoiro ir e vir pela mesma. Evitem
cruzar-se com um porco ou com um funeral, mas acreditem que será benéfico
aparecer um gato preto ou um limpa-chaminés.
No Minho, em recuados tempos, os noivos seguiam para a
cerimónia em carros de bois enfeitados com campainhas. Naquela espécie de
limousine, o noivo devia ter o cuidado de ir para a igreja com as pernas para
fora e voltar da cerimónia com elas para dentro, como um paxá.
Perguntará algum leitor, com pertinência: então, onde
atavam os amigos a tralha da lataria no veículo nupcial, que dizem dar
felicidade? No carro de bois, não, porque a coisa andava tão devagar como se
estivesse numa película de Manoel de Oliveira; depois, com tal chinfrineira de
rodados, mal se dava pela chocalheira das latas. Pois bem, para solucionar essa
questão, atirava-se literalmente um sapato ao noivo, que o devia apanhar para o
colocar aos pés da cama, como símbolo de autoridade.
A primeira fatia do bolo de casamento deve ser cortada,
em conjunto, pelos noivos, sob pena de não haver descendência se só um deles o
fizer. O corte da fatia por ambos simboliza a partilha de tudo entre si.
Para terminar o arrazoado, mais alguns dos avisos da
senhora superstição.
Se alguém, por distracção, calçar uma bota e um sapato,
é sinal de que se desmanchará um casamento na família. Pior do que isto é
saber-se que a crendice larga enfaticamente que o primeiro recém-casado a subir
para a cama na noite de núpcias é o que primeiro morrerá, havendo idêntico
desfecho para aquele que apagar a luz do quarto. Temo que as superstições deste
jaez, desta feita e através destas perplexidades, façam com que na noite de
núpcias ambos se estendam no chão do quarto e de luz acesa.
Enfim, com tantas recomendações, especialmente as que
omiti aqui, é caso para considerar as palavras dos mal-intencionados que dizem
chamar-se santo ao casamento porque conta com inúmeros mártires.
IMPOSTOS. Se já não escrevi isto atrás, é porque vai ser escrito
adiante ou, para não reler o escrito, deve ter sido referido antes e depois
desta entrada que fala dos impostos e a sua relação com as bruxas.
Escusado será dizer que na Idade Médio, a alta e a
baixa, bem como nos períodos que se seguiram, mormente com a Inquisição, as
bruxas pagavam os impostos após a morte: todos os seus bens eram confiscados. E
os herdeiros, mesmo assim, ainda pagariam a “lutuosa” ao senhorio ou ao rei,
imposto que se calculava segundo os bens do defunto.
No entanto, tenho de dizer que as bruxas não tinham impostos
especiais pela actividade, que era naturalmente considerada prática criminosa e
contrária aos ensinamentos religiosos. O único imposto que indirectamente estariam
sujeitas era a “baluga”, curioso tributo fixado generalizadamente em três
arráteis e meio de cera ou quatro soldos, pela alcavala com o nome de “ossas”,
se enviuvassem e pretendessem casar de novo. Emendo: havia um outro que
certamente lhes cobrariam, que era a “talha”, pois deste imposto ninguém se
livrava… E era cada talhada! Tratava-se de uma contribuição extraordinária –
como há hoje tantas para acorrer aos mesmos efeitos – cobrada aos que tinham,
aos que não tinham e aos que fingiam não ter, para suprir falhas do erário
régio quando qualquer acontecimento originava falha de dinheiro superior às
necessidades.
As bruxas de hoje, livres da infeliz cobrança “post
mortem”, não se livram do leque de tributos do espectro fiscal. Basta lembrar
que um simples instrumento de trabalho, como a bolinha de cristal, vem
facturada com vinte e três por cento de IVA. E, mesmo que a sua actividade
fosse enquadrada no regime ilícito, lá está o código do IRS que, logo no
articulado a abrir engloba todos os rendimentos, “mesmo quando provenientes de
actos ilícitos”.
LIVROS. Para além do Manual das Bruxas, que deve ter uma
edição limitada, há outras obras escritas por atrevidos que não pescam nada do
assunto (como é o meu caso) e que parágrafo sim parágrafo não metem os pés
pelas mãos, limitando-se a copiar e colar o que vão espreitando pelas ligações
do Google.
Bruxa que se preze deve possuir o Grande Livro de São Cipriano, bem como o Primo Basílio, a maior
parte – se não toda – a obra de José Rodrigues dos Santos e a colecção dos
anuários de estatística do INE.
As bruxas, no entanto, têm um “livro das sombras” que
elas próprias escrevem à mão (hoje devem fazê-lo no mais recente Microsoft
Word) como se fosse um diário. Este livro tem a particularidade de não
sobreviver ao autor, ao contrário das obras premiadas com o Nobel da
Literatura. Este livro deve ser queimado logo após o último suspiro da bruxa.
Querer pretender adquirir livros de bruxaria e feitiçaria
à moda antiga pela internet, é como tentar encontrar online um catálogo de zarabatanas de paxiúba do Amazonas (não
confundir com os livros vendidos na Amazon,
embora haja por lá obras mais eficazes que as zarabatanas do rio Içana).
VASSOURAS. É um meio de locomoção por excelência para a arte
bruxática (devo ter criado um termo novo), tão importante para a classe como o
automóvel é hoje para a distribuição do correio porta a porta pelos CTT.
Trata-se de um transporte rápido, silencioso, económico, eficaz e não poluente,
com a imensurável vantagem de não estar pendente dos constantes aumentos do
preço dos combustíveis e das irritantes filas nas bombas de abastecimento. Tem
ainda a particularidade de todas as funções de um voo doméstico e das viagens
“low-cost”, sem as habituais chatices do apertar do cinto (coisa que os
portugueses fazem constantemente desde que se levantam da cama), do não fumar e
da praga das assistentes de bordo. Como se trata de um monolugar, tem a vantagem
de se incluir no espírito “motard”, sem capacete, longe das expectativas causadas
pela obediência aos semáforos, aos sinais de stop e ao sopro no balão para controlo
de álcool. Mais ainda, sem o pagamento do imposto único de circulação (cujo
nome é um eufemismo, porque este não é o único imposto para quem circula), e
sem a obrigatoriedade dos coletes reflectores, dos triângulos de sinalização e
do seguro em dia.
A vassoura, para além destas prerrogativas retro apontadas,
tem porém inconvenientes. Se não pertencer à bruxa, basta virá-la ao contrário
e colocá-la atrás de uma porta, o que a impede de sair desse sítio.
VIRGINDADE. Encontrava-me na elaboração deste arremedo tosco de
enciclopédia quando li uma notícia na qual se dizia que uma jovem chinesa
anunciara nas redes socias que trocava a sua virgindade pelo prazer de ter um iPhone4 novinho em folha. Dizia mais: e
que fazia isso com qualquer um que se dispusesse à troca.
Há uns anos atrás, um “drama” deste género era passado
a verso e cantado nas feiras com folhetos a tostão.
Eu ia escrever uma obscenidade, mas lembrei-me que
esta enciclopédia é livro de respeito, para ser lido por qualquer idade e em
qualquer lado, desde as salas de leitura da Biblioteca Nacional até à paragem
do eléctrico 28, se algum carteirista não se antecipou e “gamou” esta
proveitosa obra.
Devo ter escrito noutro lado sobre uma das superstições
que pendem sobre a virgindade ou a perda dela, que é o costume, em aldeias de
Portugal, considerar que o estrondo dos foguetes, no dia do casamento, tirava a
virgindade às noivas. Cá para mim, este seria um pretexto para ludibriar o
tanso do noivo, pois um parente vivaço era capaz de fazer estralejar meia dúzia
de foguetes de cana e um morteiro para salvar a honra da dita.
Há outras superstições mais arriscadas para servir a
prova da virgindade, como fazer passar a donzela por um enxame de abelhas sem
ser picada.
Como ponto máximo da superstição, está a crença de que
a mulher que dá à luz sete filhos de outros tantos pais readquire a virgindade.
Esta, até eu não acredito, salvo se o sétimo “pai” assegurar, sob compromisso
de honra, que o virgo está intacto e flexível.
P.S. Como podem ler, hoje estou um "mãos largas", dando sete dos cento e tal entradas (quase duzentas) incluídos na obra referida, que estará à venda após uma noite de lua cheia, se não sair embruxada à semelhança dos cartazes eleitorais do PS (Post Scriptum, seja bem entendido).