CAÇA ÀS
BRUXAS. Quando se fala em caça às bruxas
sem se referir a políticos e à política, alude-se à ignominiosa perseguição
religiosa e social que começou no final da Idade Média e atingiu o seu apogeu
na Idade Moderna, por se achar que as bruxas eram tidas como satânicas. Naquela
paranóia instituída, queimavam então as pobres mulheres em fogueiras para as
castigar e “purificar”.
A caça às bruxas, tal como outros tipos de caça com o
seu “Manual do Bom Caçador” ou “O Manual do Caçador Furtivo”, possuía também um
livro de instruções do género faça você mesmo, se puder. Tem por título Malleus Maleficarum, ou "Martelo
das Feiticeiras", publicado em 1486, originalmente escrita em latim pelos
monges dominicanos Kramer e Sprenger.
Nesta obra, os capítulos estão recheados de assuntos e
questões como estas: se os íncubos e os súcubos podem conceber crianças;
se as bruxas que copulam com demónios; se as
bruxas que são parteiras matam de diferentes maneiras as crianças concebidas no
útero, e tentam um aborto, ou se não fazem isso, oferecem aos demónios os recém-nascidos,
entre outros assuntos de semelhante jaez.
Se em vez daquela trapalhada, os fradinhos rotundos,
ardilosos e implacáveis, tivessem escrito uma enciclopédia alegre ter-se-ia
poupado muitas vidas e, com a legalidade da profissão, muita receita fiscal
entraria nos cofres do erário público. Já não conto que me poupariam muito
trabalho, pois para fazer esta edição bastar-me-ia chegar à net, copiar e colar.
O primor desta obra “ Martelo das Feiticeiras” teve direito
a bula de Inocêncio VIII, “bispo, servo
dos servos de Deus, para eterna memória”.
Se não queimaram aquela tralha toda, ainda restam por
aí alguns exemplares, mormente traduzidos e dispostos para downloads na internet.
CALDEIRÃO. Um dos símbolos da actividade, geralmente com água a
ferver, onde se juntam alguns corantes para dar efeito, bem como ervas e fauna
rasteira vária, tais como asas de morcego, rabo de escorpião e sémen de
unicórnio. No entanto, trata-se de um instrumento mágico tão importante como é o
estetoscópio médico para um clínico que mostre estar em serviço. Representa o
ventre da deusa e o útero feminino. O seu tamanho deve ser um pouco menor que
uma das panelas do restaurante El Celler de Can Roca.
Decerto não confundir este caldeirão com o da lenda
que atribuiu o seu enchimento de ouro através do arco-íris, porque se fosse
real já teria na periferia os auditores da Goldman Sachs, os mercados bolsistas
e outras organizações sem fins lucrativos.
CALENDÁRIO. Os encontros das bruxas em conciliábulo decorrem
ciclicamente nos dias de São João e de São Tomás, nas vésperas de Natal, às sextas-feiras
e sábados. Estes seminários têm lugar nas encruzilhadas, nas pontes de pedra em
decrepitude (e não faltam por todo o lado) ou nos poços abandonados. Às
terças-feiras é dia de folga para o serviço, pelo que andam as bruxas à solta.
O que não quer dizer que não actuem!
CASAMENTO. Agora é que são elas! Sobre o casamento há tantas
superstições que, se fossem levadas a legislação, havia por lá mais artigos do
que no Código Civil (e este leva qualquer coisa acima dos dois mil e
trezentos). Por isso, estão a ver, pela rama é que eu vou passar este verbete,
uma vez que não pretendo uma enciclopédia alegre de solteiros, casados e
divorciados.
Vejamos, só para mata-bicho.
Quer casar em Maio? Marcou a boda para um sábado,
principalmente se neste dia decorre o aniversário de um dos noivos? Não o faça.
Prefira casar a uma quarta-feira, pois é a superstição que o recomenda e o
melhor mês é Junho, por ser dedicado a Juno, fiel esposa de Júpiter. Outro
conselho: deve ser o noivo a fechar a porta do quarto na noite de núpcias.
Victor Hugo chegou a afirmar que o casamento é um
romance no qual o herói morre no primeiro capítulo.
Começando do princípio, diz a crença que não se deve
varrer os sapatos e os pés dos jovens solteiros, pois é sinal de que não
casarão e que, se uma pessoa solteira ouvir uma vaca berrar, deve meter uma das
mãos na algibeira, para assim vir a casar cedo.
Acertado o casório, pois o namoro não deve ser prolongado
como o do Sapo Cocas e da Miss Piggy, a escolha do vestido é também importante,
segundo a crença. Para já, deve ser de seda, porquanto o cetim é considerado
aziago, enquanto o veludo pressagia pobreza. O véu foi criado para evitar que
os espíritos malignos cobicem a noiva. Se não sabiam esta, ficam a saber.
O cortejo nupcial deve seguir para a igreja por uma
rua e regressar por outra, porque é de mau agoiro ir e vir pela mesma. Evitem
cruzar-se com um porco ou com um funeral, mas acreditem que será benéfico
aparecer um gato preto ou um limpa-chaminés.
No Minho, em recuados tempos, os noivos seguiam para a
cerimónia em carros de bois enfeitados com campainhas. Naquela espécie de
limousine, o noivo devia ter o cuidado de ir para a igreja com as pernas para
fora e voltar da cerimónia com elas para dentro, como um paxá.
Perguntará algum leitor, com pertinência: então, onde
atavam os amigos a tralha da lataria no veículo nupcial, que dizem dar
felicidade? No carro de bois, não, porque a coisa andava tão devagar como se
estivesse numa película de Manoel de Oliveira; depois, com tal chinfrineira de
rodados, mal se dava pela chocalheira das latas. Pois bem, para solucionar essa
questão, atirava-se literalmente um sapato ao noivo, que o devia apanhar para o
colocar aos pés da cama, como símbolo de autoridade.
A primeira fatia do bolo de casamento deve ser cortada,
em conjunto, pelos noivos, sob pena de não haver descendência se só um deles o
fizer. O corte da fatia por ambos simboliza a partilha de tudo entre si.
Para terminar o arrazoado, mais alguns dos avisos da
senhora superstição.
Se alguém, por distracção, calçar uma bota e um sapato,
é sinal de que se desmanchará um casamento na família. Pior do que isto é
saber-se que a crendice larga enfaticamente que o primeiro recém-casado a subir
para a cama na noite de núpcias é o que primeiro morrerá, havendo idêntico
desfecho para aquele que apagar a luz do quarto. Temo que as superstições deste
jaez, desta feita e através destas perplexidades, façam com que na noite de
núpcias ambos se estendam no chão do quarto e de luz acesa.
Enfim, com tantas recomendações, especialmente as que
omiti aqui, é caso para considerar as palavras dos mal-intencionados que dizem
chamar-se santo ao casamento porque conta com inúmeros mártires.
CASTANHAS. Comer muitas castanhas provoca piolhos na cabeça, principalmente
se forem cruas, mas quem as comer no dia 1 de Maio ficará isento de dores de
cabeça durante todo o ano.
Não é fácil encontrar uma castanha de três bicos, mas
se aparecer esta gema, deve guarda-se porque protege das bruxas e das traças,
possivelmente com protecção extensível às penhoras e a beijos ou abraços de
políticos em campanha.
CEBOLAS. As cebolas têm um receituário na superstição amorosa
quase equivalente ao que têm na culinária. Utiliza-se a cebola roxa para
afastar rivais, machos e fêmeas, e qualquer tipo de cebola para ajudar na
escolha do namorado ou namorada, através dos rebentos que a primeira deitar.
Também se usam para curar doenças, abrindo-se ao meio
e deixando-se sobre um móvel do quarto do enfermo até este curar. Acredito que
resulte de uma ou de outra forma: ou cura mesmo ou, com o pivete a podre,
obriga-se o doente a dar alta a si próprio e sair dali a sete pés.
É superstição antiga dizer-se que se tornam insensíveis
as pancadas da régua da professora nas mãos dos alunos, se se esfregar na
palmatória uma cebola descascada.
Esta, eu posso desmistificar. Um dia, na turma da primária,
um grunho passou a polpa de uma cebola pela régua da professora, pois teria
recolhido a receita de uma avó. Quis o acaso que fosse ele a experimentar o
“amaciado” instrumento de tortura escolar e, todos nós, vimo-lo sorrir até
levar a primeira pancada numa das mãos. Com alguma perplexidade, nós e ele
(mais ele do que nós) assistimos aos gritos e aos saltos como se o estivessem a
capar.
CHAMPANHE. As superstições são vividas ao longo do ano; no
entanto, com a entrada de novo ano, são inúmeras as que são seguidas e
atendidas por larga maioria de pessoas, principalmente ante, durante e após as
doze badaladas do dia 31 de Dezembro. Abre-se o dito, mesmo que seja espumante,
e guarda-se a rolha da garrafa aberta na ocasião para festejar o Ano Novo, em
lugar secreto, para que traga dinheiro. Também se acredita que é de bom agouro
dar três saltinhos com uma taça de champanhe na mão, de modo a que não verte
sequer uma gota; há quem leve o costume mais longe, deitando após o conteúdo do
copo para trás, independentemente de molhar alguém, porque garantirá a sorte a
essa pessoa. É evidente que não terá semelhante sortudo aquele que for atingido.
CHIFRES. Não é sinal de sorte ter um chifre em casa. No
sentido literal do termo, o chifre de boi constitui protecção contra o diabo,
mas para afugentar o bruxedo nada melhor que o de veado.
Se o intuito fosse rebaixar este artefacto e a sua conotação
com pormenores de outras metáforas, nem sequer abria o verbete.
CHINELOS. Quando são velhos, este adereços podem ainda prestar
um último serviço aos seus proprietários. Se forem queimados, e não forem de
plástico, parecem constituir um gratificante antídoto contra as bruxas, cuja
repulsa, estou em crer, poderá ser causada pelo peculiar cheiro do chamado
“sulfato peúgo” durante e após a incineração.
CIGARROS. Não é de bom augúrio acender mais do que um cigarro
com o mesmo fósforo, assim como é embaraçoso para uma rapariga pisar um charuto
ou uma cigarrilha já fumados, dado que isso acarreta casarem com o primeiro
homem que virem depois desse percalço.
Bem, azar azar não é de todo, porque podem cruzar-se
repentinamente com o Cristiano Ronaldo ou o Tom Cruise.
CONSULTAS. Cobrança sim, facturas nada. A actividade nunca foi
devidamente catalogada e, se o fosse, fazia-se tábua rasa do articulado.
O tarifário das consultas é, como tudo nesta vida, do
mais puro secretismo. Por um lado, está a concorrência, por outro o
preenchimento dos recibos verdes, se é que existe alguma profissional que os
passe.
É comum, nalguns escritórios de especialidades médicas
soar o aviso de que com recibo o preço é mais elevado. Ora, no caso das bruxas,
bastar-lhes-ia avisar que o receituário e os feitiços, em caso da passagem de
recibo, não resultariam.
Que se saiba, uma bruxa de Gaia, de nome Olívia, ostentava
à porta do consultório a seguinte tabela: “Consultas a dois escudos. Quem quer,
quer, quem não quer, não quer”. E olhem que isto é mesmo verdade!
CORNUCÓPIA. É uma espécie de pastel que, nalgumas pastelarias,
se chama caramujo; contudo, a cornucópia é mais retorcida e o recheio é
diferente. A que aqui é referida para o caso, é um chifre tradicional da abundância,
símbolo da generosidade, boa colheita e com implicações mágicas em vez das
gastronómicas. Dizem que o próprio chifre é um símbolo fálico, representante do
sagrado masculino, mas eu não vejo como! O interior do chifre simboliza o
útero, especialmente quando está cheio e fértil, representando o feminino. Por
isso também se lhe chama corno da fartura, de que resulta aquela expressão
quando alguém nega a outro o pretendido por este: ficas a chuchar num corno!
CRIANÇAS. Dizem que as bruxas têm particular prazer em chupar o
sangue das crianças. Por isso, recomenda-se que antes do baptismo não devem
ficar os meninos às escuras, a fim de se evitar que as bruxas os levem para os
telhados.
Sobre as crianças há tanto assunto que seria melhor levá-lo a enciclopédia própria, distribuída em fascículos e levada de barato na sacola do Expresso,
Sobre as crianças há tanto assunto que seria melhor levá-lo a enciclopédia própria, distribuída em fascículos e levada de barato na sacola do Expresso,
CUCOS. Há quem diga que é de bom presságio ter moedas soltas
na algibeira quando esta ave canta pela primeira vez em cada ano. Se
chocalharem as moedas com a mão, então o sinal é melhor ainda, pois haverá esse
ano grande prosperidade financeira. Por causa disto, não me perdoo quando ouvi
cantar o cuco na altura em que deixei os últimos cêntimos num parquímetro .
Conta-se que a poupa era mulher do cuco, mas que ela
andava amancebada com o mocho. O cuco, enciumado, foi bater no cu do mocho e
este, enquanto apanhava, ia dizendo – ui, ui!. O cuco, a cada pancada, dizia –
no cu, no cu! A poupa, pelo seu lado, apelava – poucas, poucas! Assim é o canto
deles.
É mau sinal para uma pessoa ouvir cantar o cuco enquanto
está em jejum.
CUECAS. Pelo menos, na passagem do ano, usar de preferência
de cor amarela, porque representa o ouro. Não se recomenda usá-las por cima das
calças, principalmente se forem vermelhas ou azuis, cingidas à pele, tão ao
gosto dos super-heróis das américas.
CUIDADOS. Quem tem filhos pequenos e ouvir miar no telhado, não
queira sequer inquirir se é gato em cio ou vizinhança indisposta. Trate antes
de deitar para cima das telhas umas pedrinhas de sal, para que as bruxas (pois
são elas que estão a berrar como os felinos) fiquem entretidas a apanhá-las.
Criança não baptizada só deve sair à rua se o seu portador
disser bem alto, à saída da porta – “o menino vai à madrinha!”.
Para que uma bruxa não apareça inesperadamente casa
adentro, será aconselhável não varrer a casa às avessas (não se fala em
aspirá-la), da porta para dentro. Para que as bruxas e feiticeiras não entrem
em casa e na família, faz-se o seguinte: uma mistura de aipos, anis, pão de trigo
ralado e três pedrinhas de sal, tudo metido numa bolsinha que se prende atrás
da porta da entrada.
Fora de casa, evita-se o mau encontro com uma dita
bruxa se se levar nos bolsos uma côdea de pão. Não o fazer no bolso onde se
guarda o lenço e, à cautela, nunca puxar por este se o pão estiver com ele
alojado no mesmo espaço.
CULINÁRIA. Alguns ingredientes da culinária da bruxaria e
feitiçaria são comuns àqueles que encontramos nos livros de cozinha do Chefe
Silva e no Pantagruel, nas receitas de Henrique Sá Pessoa ou naqueles
restaurantes que receberam mais de duas estrelas Michelin. Mas outros não.
Estes são próprios da cozinha tradicional do caldeirão, embora este sirva
principalmente para preparar as poções que vemos coloridas nos filmes de
Disney.
Quem quiser praticar este “requintado” tipo de culinária
e beberagens, vai ter de correr todas as lojas “Pingo Doce” e “Lidl” para
encontrar chifre de dinossauro ou cauda de dragão, condimentos sem os quais
alguns preparados não passam de meros ensopados insalubres.
Não quero dizer que as bruxas não apreciem a boa mesa,
umas boas bifanas no pão, um arroz de cabidela ou umas amêijoas à Bulhão Pato,
mesmo sem pitada dos seus ingredientes secretos.
É certo que havia um código especial para certas receitas
e ingredientes, de que extraí de algures alguns exemplos (a gente está sempre a
aprender, mesmo que seja enciclopedista): ao pepino dão o nome de barriga de
sapo; a cebola é chamada lágrimas de moça e o azeite olho de sapo; ao açúcar
dão o nome de pelos de unicórnio (vou pensar nisto quando tomar a bica); a
batata designa-se coração de dragão e o nabo recebe o nome de chifre de
rinoceronte, ao passo que tem o nome de beijo de sereia o vulgaríssimo sal de
cozinha. E por aí adiante, que isto é uma enciclopédia generalista e não de
culinária.
Isto de cozinha não são só ingredientes, mas o modo
como se preparam. Por isso, resta-me acrescentar que não é de bom agouro mexer
a comida no sentido contrário aos ponteiros do relógio.
Ah, e também não é de bom agouro servir com aqueles faqueiros que os ministros dos Negócios Estrangeiros adquirem pela bagatela de duzentos mil euros.
Ah, e também não é de bom agouro servir com aqueles faqueiros que os ministros dos Negócios Estrangeiros adquirem pela bagatela de duzentos mil euros.