Q
QUEBRANTO. Na farsa Quem
tem farelos?, de mestre Gil Vicente, a determinado passo encontra-se a
excomunhão: “Má cainça que te coma/ mau quebranto te quebrante”.
Este anátema possui característica inversa à das feromonas
– nem sequer faz despertar o apetite sexual. O “quebrantado” ficará, pois, num
estado de letargia, abúlico, febril e definhado.
O quebranto age como um vírus, talvez com o poder de “o
pai de todos os vírus”, só lhe faltando um nome em latim e referência em simpósio
farmacológico para se tornar mais respeitável entre os seus pares. De qualquer
forma, sempre é mais fácil de pronunciar que enterobius vermiculares, uns vermes no vulgo alcunhados de lombrigas.
R
REUNIÕES. Segundo consta, podem realizar-se em qualquer lado,
mesmo em salas multifuncionais com ar condicionado, projectores de tela,
tradução simultânea e acesso à internet. O mais provável é que se dispensem
esses requisitos e ocorram numa laje granítica, previamente limpa de detritos
de rebanho, junto a uma encruzilhada de caminhos onde não haja sinalização de
trânsito.
Já
o calendário pia mais fino e é imutável nos dias de presença, sem hipótese para
ausências justificadas, às terças e sextas feiras. Tratam-se assuntos que são
postos dentro e fora da ordem do dia, lançando os seus discursos de elevado
teor conceptual, permitindo-se considerandos, requerimentos e propostas, desde
que contenham matéria conclusiva sobre a arte de embruxar toda a coisa.
Não levem a mal, mas como ainda não assisti a nenhuma,
não asseguro se tudo isso se passa como em outras assembleias desassombradas.
Também não me consta que se lavrem actas, relatórios ou meras resenhas sobre os
assuntos agendados.
Ah! Não sei se as votações são por maioria simples ou por
unanimidade, de braço no ar ou língua de fora; e sei também que as únicas
geringonças permitidas são as vassouras de transporte.
Como é da praxe, reunião antes, estômago depois. É
neste particular e em outros fora deste âmbito: quando se trata de seminários e
outros arraiais congéneres, umas roucas e outras afónicas, as bruxas
empanturram-se de comidas pouco recomendáveis e indigestas, com alto teor
calórico. Mas é uma opção que as livra da conta exagerada e das gorjetas nos
restaurantes.
S
SÁBADO. Dia das reuniões – o “sabat” – em que reúnem as
bruxas com o bode dos “cornos grandes”, que desempenha funções equivalentes às
de presidente do conselho de administração, e que preside à cerimónia numa
encruzilhada de caminhos e em redor de um espinheiro. Esmeram-se na forma
indecorosa como se vestem para a ocasião, narram façanhas, fumam charutos Montecristo
(furtados na secretária de algum ministro ou de um banqueiro), falam das
vítimas passadas e futuras e apresentam ao amo as neófitas de quem serão
madrinhas.
As noviças, que possuem perfis no Linkedin, iniciam-se
por renegar a religião e a existência de Deus, enquanto as madrinhas são recompensadas
com moedas de ouro e prata, que terão de ser gastas no prazo de 24 horas, numa
casa de bingo ou num supermercado, sob pena de desaparecerem em fumo.
Goethe e Victor Hugo tentaram-se pela descrição sabática
nas suas obras e o pintor Jeronimus Bosch, em “As Tentações de Santo Antão”,
colocou na tela um casal de bruxos que vai até ao “sabat” montado num peixe, o
que constitui substituição do uso da tradicional vassoura.
SANCHO
PANÇA. É o martirizado e incompreendido
companheiro de D. Quixote, autor da máxima que outros parafraseiam - não creio
em bruxarias, mas que as há, há.
Farto de ver coisas estapafúrdias, das quais e não menos
significativa era um amo desaparafusado do juízo, o gordo e desajeitado
escudeiro só lhe faltava acreditar em bruxas. Aliás o Sancho Pança era um pobre
diabo que tinha um fôlego épico para aturar tanto disparate junto. Mas tantas e
tais as mirabolantes contradanças e alucinações em que o seu amo se meteu, que
o coitado passou a crer na existência daquilo que não cria, mas que nós cremos
que ele cria.
SAPATOS. Agora habituei-me aos pés e aos sapatos sem
atacadores, como ténis e mocassins, os que apertam com velcro e sandálias.
Sapatos com atacadores, só para cerimónias e calça vincada. Por essa razão não
me preocupo com a superstição que diz ser aziago calçar um dos pares com um
atacador castanho e o outro com atacador preto, pois o castanho simboliza a
terra da sepultura e o preto a escuridão da morte.
Na passagem de um ano para o outro, há quem se dê ao
cuidado de colocar uma nota (no caso, o euro, no mínimo uma nota de cinco)
dentro de um dos sapatos (de preferência, o direito), porque atrai mais
dinheiro, uma vez que se acredita que a energia e a abundância entram pelos
pés.
A propósito, também traz bom augúrio saltar com o pé
direito, sem se incomodar muito com os euros aí escondidos, porque mais pisados
do que estão pela Europa fora, é impossível. Acautele-se com o cheiro dos pés,
principalmente se pretende posteriormente trocar a nota.
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