Faleceu o Jorge Magalhães, de 80 anos de idade, editor,
coordenador, tradutor e argumentista.
No meu caminho de ainda jovem autor de BD encontrei
o Jorge Magalhães. Era ele coordenador do Mundo
de Aventuras e eu porventura um provinciano que foi trabalhar para Lisboa,
na altura como funcionário da Direcção Geral das Contribuições e Impostos, na
Rua da Alfândega. Levava-lhe uns desenhos gatafunhados a tinta da china, feitos
com aparos de canetas, em papel “cavalinho”.
Tinha o Jorge aberto um espaço na revista aos
jovens desenhadores de BD portugueses e eu fui tentar a sorte. Presumi que
seria recebido – se é que o fosse – por algum editor com cara de pau,
majestático, apressado, que me olhasse de alto a baixo para me rachar, nesse
mesmo sentido, as ilusões. Não. Apareceu-me um ainda novo Jorge Magalhães, bem
parecido, bom conversador, decidido, conhecendo o meio da arte por dentro e por
fora, aqui e em além mar em África e em todo o estrangeiro. Atencioso, comparsa,
sempre com uma resposta sábia, logo à primeira vista com a aura de pessoa em
quem podemos confiar. Quando lá aparecia, entrando pela porta da ruela da
Saraiva de Carvalho (onde pairava no ar um cheirinho a café torrado), ele
estava sempre disposto a dar dois dedos de conversa, a mostrar-me originais, a
falar de publicações futuras. Um sonhador, um idealista arguto que
concretizava. No entanto, sempre me pareceu um homem do nosso tempo, tanto do
séc. XX como do XXI, atento às mutações tecnológicas e editoriais. Certa vez,
em conversa telefónica, quando eu lhe disse que fazia falta um Mundo de Aventuras, ele esclareceu: “Nos
dias que correm, já não há no mercado lugar para uma revista do seu género”.
Falou-me do encontro dos desenhadores,
argumentistas, editores e amantes da BD que tinha lugar, às quintas-feiras à
noite, no Parque Mayer, mais propriamente no restaurante que ficava ao cimo, da
Gina e do Júlio, o Júlio das Miombas, que felizmente ainda resiste. E foi lá
que nos encontrávamos, um grupo heterogéneo, aberto, falando com conhecimento e
atenção às novidades até se esgotar a corda da conversa. Eu e o Jorge até
jantávamos lá. Depois, quando se chegava a hora para ele apanhar o comboio no
Rossio, descíamos os dois a Avenida da Liberdade, não sem o Jorge parar nos
“alfarrabistas” de rua, onde ia deitando os olhos ao que ali se vendia, sempre
com espírito conhecedor.
Saí de Lisboa, continuou ele a aceitar os meus
trabalhos, sendo que um deles saiu no penúltimo número da revista.
Mais tarde, quando a Maria José, sua filha, com a
mesma simpatia e grandeza de alma do pai, decidiu arrojar a publicação de uma
BD minha com a chancela da ASA, foi o Jorge que fez a apresentação do
desconhecido autor e do livro na Livraria Buchholz.
Encontrámo-nos umas duas ou três vezes mais, mas
trocávamos comentários nos respectivos blogs e através de e-mail, sempre
recebendo da parte dele os melhores conselhos e alguns elogios que, emboras
sinceros da sua parte, eu nem sequer merecia.
O Jorge Magalhães foi – e é, porque a sua obra como
autor e editor, perdurará – um Homem de grande entrega, amigo do seu amigo,
sensato, activo (mesmo quando a doença o impedia), conselheiro, experiente
apreciador e justo na sua forma de ser. Autêntico, dizia o que tinha a dizer e
até criticava, fazendo-o com uma elevação de tal maneira simpática, que não
feria e tornava os seus elogios com a credibilidade máxima. Lembro-me que um
dia, com aquele sorriso de simpatia que o caracterizava, me disse: -“ Ó
Fernando (tratava-me pelo primeiro nome), você escreve muito melhor do que
desenha”. E tinha razão.
Numa entrevista que me fez para publicar uma BD da
minha autoria na revista Mundo de
Aventuras, deixou como subtítulo, referindo-se a mim, “Um Exemplo de
Persistência”. Nunca esqueci este elogio, porque também tinha razão.
Para além de exímio tradutor, trabalhou como
argumentista de muitos desenhadores e deixou a sua marca. O Jorge tinha uma
imaginação fértil, em todos os campos da literatura (soube mais tarde que
também era um excelente poeta), dominava os conhecimentos da História, replicava
os costumes dos quatro cantos da Terra; nos seus argumentos, tanto se entrava
num deserto com as suas personagens, como as levava até às planícies geladas
dos polos, como as fazia contracenar nas pradarias americanas ou nos bosques
africanos; dos seus textos saíam aventuras que prendem os leitores pela sua
consistência e trepidante narrativa. Não encontro outro que se iguale.
Uma outra faceta, que mais tarde vim a conhecer, é
ter o Jorge especial carinho pelos animais. Compartilhava-o com a companheira,
Catherine Labey, sendo esta uma alma cândida e autora companheira da Banda
Desenhada. Esta bonomia e dedicação, mais se timbra no facto de tanto eles como
eu gostarmos especialmente de gatos e, neste campo, termos até trocado alguma
correspondência dolorosa com os animais que se finaram pela mesma lei da vida.
Foi através do Luiz Beira (outro companheiro das
tertúlias) que fiquei a saber que o Jorge estava internado, em estado já grave,
no Hospital de Cascais. E foi também o Luiz, com voz embargada, que me deu a
notícia do seu falecimento. Vieram-me as lágrimas aos olhos. Foi mais uma
referência que se perde na lei da morte, embora fique uma estrela que brilha e
brilhará no firmamento da Banda Desenhada, um conhecedor, aquele que
impulsionou, descobriu e deu a conhecer alguns dos melhores talentos
portugueses. E que deixou vasta obra própria, para além da que editou com
sapiência e oportunidade.
À companheira Catherine, à filha Maria José
Pereira, ao seu genro, e aos dois netos Ricardo e João, deixo o meu pesar, por
esta expressa forma de gratidão por aquilo que o Jorge Magalhães fez por mim,
por nós, pela arte da escrita e do desenho em Portugal.
Estou-lhe grato, Jorge Arnaldo Sacadura Cabral de
Magalhães. Mesmo tendo entrado nos umbrais da noite eterna, que todos havemos
de passar, não o esquecerei como Homem, como Editor, como Amigo, bem como a
delicada humanidade que o caracterizou, do talento e do companheirismo que
nunca claudicaram da sua parte.
Obrigado, Amigo, para sempre.
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