Este é um conto retirado do 2º volume dos CONTOS DE AMOR E DRAMA, da minha autoria. É um dos meus preferidos, pelo que o exponho aqui para quem tiver pachorra para o ler na íntegra.
A situação relatada, embora na primeira pessoa, não significa que o personagem fosse eu, mas também não digo que não fosse. Se não aconteceu, podia ter acontecido...
A BOLEIA
Só percebi que a mulher pedia boleia quando já a tinha
ultrapassado. De facto, para quem me conhecesse de perto, sabia que num relance
eu me apercebia de qualquer presença feminina, mesmo a cento e tal à hora...
Acontecia, naquela ocasião, que eu ia com a minha
ideia fisgada quanto à delambida que tinha ficado viúva do meu melhor amigo,
descido ingloriamente à terra fria da sepultura uma hora atrás. Não bastava o
desgosto de o ter perdido para sempre, ainda tinha a desdita de assistir ao
triste figurão que a viúva fez no funeral, a bater-se descaradamente a um marmanjão
que parecia quere-la comer com os olhos.
Fiquei bera com aquelas cenas, pronto! O meu defunto
amigo merecia uma mulher que o respeitasse na vida e, não digo mais, pelo menos
algumas semanas após a morte. Nem uma coisa nem outra. Ela devia estar obrigada
à imposição a que estão sujeitas as viúvas de uma tribo da Austrália: não podem
falar enquanto não secar uma camada de argila branca aplicada na pele após a
morte do marido. E a coisa podia demorar meses.
Estava eu a contar que ultrapassei na brasa a
inopinada presença de uma fulana a pedir boleia. Ia triste e pesadão para os
lados do humor, mas não me fiz esquisito. Travei a fundo e recuei.
— Para onde é a ida? — perguntei.
Ela deu a volta ao carro pela frente e apareceu do meu
lado, metendo o rosto pela janela adentro. Dava para sentir o bafo e o calor
que irradiavam aquelas duas protuberâncias mamárias que sobressaíam de encontro
à chapa da porta.
Disse com um ar mais natural deste mundo:
— Tu tens tão boa pinta como o carro. Vou para onde tu
fores.
Tenho aqui um arranjinho, pensei. E logo num dia em
que eu me sentia moralmente nas lonas!
Mas não é que, quando a vi mover as ancas ao dar nova
volta ao carro, pela frente, disse para comigo: não é falta de respeito para um
amigo defunto arranjar um romancezinho, que as mágoas precisam de um regaço
para caírem... desde que não fosse a própria viúva.
A rapariga era daquelas estampas que nos enchem as
medidas e ele, lá em algures, podia até chamar-me maricas. Como também não sou
um bicho do mato, não me dei por achado.
— Entra e põe o cinto.
Sentou-se tão à-vontade que, mesmo sem fazer esforço
estrábico, fiquei a mirar um bom par de pernas, do joelho para cima. Ela sabia
as coxas que tinha e os abusados centímetros que deixou ao léu. Tanto sabia que
deu em dizer, assim de chofre:
— Olha antes para a estrada e prego a fundo.
Então era isso o que ela queria: emoções fortes. Pois
batera na porta certa. Em menos de nada batia os cento e quarenta. Que tal,
hem?
— Esta coisa não dá mais ou és tu que não tens unhas
para ela?
Toma! Uma boca foleira daquelas merecia resposta
adequada. Pisei o acelerador até me doer o tornozelo e encomendei-me ao anjo
Custódio. Com uma mulher daquelas a fazer pouco de mim, matutei: dá tudo por
tudo, rapaz, e aguenta que é serviço!
À saída da curva, pimba! Avistei num ápice uma mota
azul e branca estacionada na berma e o polícia da brigada de trânsito a "morder"
o esquema do acelera.
É como digo. Há dias que não devia sair de casa, quero
dizer, do quarto, da cama, sei lá, debaixo dos lençóis.
Travei a fundo, fiz uns "esses" pouco
ortodoxos e deixei que a frente do lado direito fosse lamber a erva da valeta.
Lá consegui parar meia dúzia de metros à frente do sinal de stop que o guarda
tinha na mão.
— Você vinha a "abrir" nas horas — iniciou o
agente em calão, com aquele sorriso maroto de quem apanha lebre na armadilha. —
Faça o favor de mostrar os documentos.
Passei a papelada para a mão dele: livrete, carta, bilhete
de identidade, seguro, número de contribuinte e um recibo de uma prestação do
carro. Não vi qualquer maquineta de controlo de velocidade e isso deixou-me
satisfeito.
— Ó senhor guarda, eu nem vinha com muita velocidade.
Quero dizer, não vinha em excesso. Se tanto, devia ir um pouco mais além do que
o limite, aí a cem, cento e dez...
Esqueci-me da pendura que levava ao lado. A sua voz
inesperada levou-me ao tapete.
— Qual cem, qual quê? — contrariou ela. — Vinhas a uns
cento e oitenta, ou mais...
Como se costuma dizer, fiquei sem pinga de sangue!
— Bolas! Esta tipa não regula bem, de certeza! Se eu
garanto que não passei dos cem...
— Morde aqui! Alguma vez, a cem, os pneus faziam a
chiadeira danada que fizeram?
— Tudo bem, tudo bem — acalmou o guarda, mordendo
lábio inferior para suster as gargalhadas. — Ao fim e ao cabo vou fazer de
contas que vinha nos cem. Até nem o vou multar por isso, veja lá você!
Começou a rabiscar sofregamente num bloco de multas,
com a ponta da língua de fora, tal e qual os putos da primeira classe. Dava-lhe
gozo aquela escrita!
Pensei: aquiesceu na questão da velocidade, os documentos
estão em ordem, o que é que este me quer?
— Se não é por isso, por que é que está a passar a
multa?
Ele deu-me o bloco para assinar sem me dar tempo a
ler, cortou o original pelo picotado e tentou esclarecer com outra pergunta.
— Já reparou na sua companheira do lado?
— Acabei de lhe dar boleia.
— Julguei que fosse sua mulher e pensei naquele
provérbio que ouvia ao meu pai: antes que cases, vê o que fazes.
— Não estou a perceber, senhor guarda.
— Ó homem — quase gritou ele. — Já viu que ela não
leva o cinto de segurança posto? A multa é por causa disso.
Fiquei ali pasmado, feito parvo, enquanto o polícia,
cada vez mais sorridente, se acercava da janela do lado dela. Quase enfiou a
cabeça por ali dentro e lhe disse ao ouvido, não suficientemente alto mas não
deixei de ouvir:
— Aposto que nem foi preciso mostrar a perna para
fazer parar este tanso.
Arrumei o papel da multa na carteira e arranquei mais
bera do que nunca. Que espécie de maluqueira passou pela cabeça desta fulana?
Eu iria jurar que ela tinha posto o cinto, mal entrou
no carro, porque foi a primeira coisa que lhe pedi quando lhe ofereci boleia.
Isso queria dizer que fez de propósito para eu pagar a multa. Ou era doida, mas
daquelas doidas varridas, ou então não ia com a minha cara e fizera de
propósito para me meter naquela alhada.
— Vais chateado, coisinho?
Nem sequer lhe respondi. Fiz bem. Não costumo lançar
impropérios e alcunhas a mulher alguma e não queria abrir uma exceção, embora
me apetecesse confirmar a regra. Em vez disso, estava mortinho para alijar a
carga o mais rapidamente possível. Mal entrei na cidade, encostei.
— Ficamos por aqui. Faz o favor de descer.
— Logo aqui, coisinho, longe da paragem do autocarro?
— Longe da paragem ou perto do inferno, tanto me faz.
— Isso é que não se faz…
— Pira-te e fecha a porta, que para chatice já me
chega a que arranjaste.
Ela fez beicinho. Então apercebi-me que era encantadora,
mesmo bonita. Mas eu estava pior que uma barata.
— Pronto! Já vi que sou indesejável. Para te compensar,
toma lá um bilhete para o meu espetáculo.
Ia dizer para meter o bilhete num sítio que eu sei e
ela também sabia, mas contive-me. Não esperou resposta, abandonando o bilhete
no assento e saindo porta-fora com um intrigante: vemo-nos em breve.
Em breve?! Nem que ela fosse a única numa ilha deserta
e eu estivesse com um ataque agudo de cio!
Meia hora depois puxei pela carteira para comprar um
maço de tabaco e... tinha sumido. Revistei o carro de ponta a ponta. Nada. Foi
a tipa!
— E agora, onde é que te vou apanhar?
Lembrei-me do bilhete do espetáculo. Estava caído no
tapete. Em vez de ter algo a ver com strip-tease,
como imaginava, remetia para um show
de ilusionismo num bar da cidade. Resolvi comparecer. Ela havia de
apresentar-me a carteira com todos os documentos — e a multa, chiça, e a multa!
— ainda que lhe tivesse de apertar o gasganete.
Cheguei atrasado mas ainda deu para ver que ela não
tinha mentido. Apresentava sozinha um espetáculo de ilusionismo, com aquela
coisa das argolas que encaixam e desencaixam, cordas que se cortam e se voltam
a unir, pombas que se transformam em papelinhos e guarda-chuvas que se convertem
em gravatas.
Mal me viu, sorriu com um ar de triunfo, vá lá
saber-se porquê.
— Por fim, a terminar — disse para o público —, graças
a um golpe de mágica, vou fazer aparecer, no lugar deste coelhinho branco, a
carteira do senhor que acaba de entrar.
Toda aquela gentinha pôs os olhos em mim. Nem sei como
mantive a serenidade suficiente para não desatar ali aos berros.
— Um... dois e... — destapou a pequena gaiola onde
tinha colocado o coelho e fez aparecer no seu lugar a minha muito desejada
carteira.
— Três!
Fiquei como uma estátua. Pela minha cara, os presentes
que olharam na minha direção viram que eu fiquei naturalmente perplexo e que
aquilo não tinha sido combinado.
— Esta é a carteira daquele senhor. Faça o favor de
subir ao palco e de conferir se é sua e se está tudo em ordem, cavalheiro.
Então não merecia uma resposta? Fiquei tão apalermado
com o desplante que, na ânsia de agarrar a carteira, tropecei num degrau do
palco e estatelei-me ao comprido.
Quando ouvi as gargalhadas da assistência, jurei:
nunca mais dou boleia a ninguém. Nunca mais!
Eu só pretendia reaver a carteira, mas ela arrastou-me
para o camarim.
— Desculpa lá esta, mas não fiz por mal. Pensei que
este truque de te "bifar" a carteira dava um excelente número e não
me enganei.
Fui tão direto como a seta de Robin Wood, melhor, a de
Guilherme Tell.
— Quero acabar de vez com esta palhaçada. Para já, não
te quero ver mais à minha frente, nem pintada!
— Calminha, coisinho. Vês isto aqui?
Mostrou-me o bloco das multas que eu vira nas mãos do
polícia e continuou:
— É a colheita de um dia de trabalho na estrada.
Tirei-lha com muita pinta, tens de reconhecer. Sabes para onde vai tudo isto,
incluindo a tua multa, não sabes? Olha...
Sem mais aquelas deitou o bloco no cesto do lixo. O
original que eu tinha guardado na carteira seguiu o mesmo destino.
— Estamos quites, menino. Depois disto, vai à tua
vida, que nunca mais te vou chatear.
Nem lhe agradeci aquela coisa da multa. Vendo bem as
coisas, tinha de agradecer? Estava disposto a não vê-la nunca mais...
Puro engano! Quando, em casa, ia a puxar do isqueiro
de prata para acender o cigarro, encontrei no bolso do casaco um bilhetinho
assinado:
"Espero-te para jantar no restaurante da marina,
o “Lagostim Azul”, às vinte horas em ponto. Se faltares, o teu isqueiro vai tomar
banho. Será que ele sabe nadar?"
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