domingo, 30 de setembro de 2012

OS HACKERS DA BD PORTUGUESA


Devo ter chegado a uma conclusão: a Banda Desenhada em Portugal só poderá vingar quando os autores portugueses passarem a assinar a sua obra com nomes americanos ou franco-belgas. Isso aconteceu há algumas décadas atrás, com autores de romances policiais e de “western”, como foi o meu caso, que assinei como Saint Coast em livros de “cow-boys” da colecção “Shane”.

Isto, por quê?
Pela simples razão que um autor português parece, para alguns “hackers” do meio, não ser, como soe dizer-se, santo na sua terra.
Vem a propósito de uma recensão crítica feita por um iluminado que assina como João Ramalho-Santos que, a propósito de “Os Piratas do Deserto”, largou a seguinte opinião (que reproduzo entre comas, para, ponto por ponto, poder contra-atacar).

“Para terminar um livro do qual gostaria mesmo de poder dizer alguma coisa positiva. Sinceramente. É de um autor português, e adapta uma obra de Emilio Salgari, autor de Sandokan, leitura de juventude que não ouso reler para não correr o risco de desilusão.
Mas a única coisa que poderia fazer neste caso era não dizer nada, e isso também não seria muito honesto. Os piratas do deserto de Santos Costa é uma história de aventuras unidimensional extremamente datada e com todos os clichés imagináveis em termos de caracterização de personagens e desenrolar da narrativa. Não se trata de ser politicamente correto ou denunciar uma visão claramente colonialista (e sexista, e classista, e xenófoba, e...). É até bem provável que muitos dos defeitos da BD estejam na obra original, e que alguns interessados formados neste tipo de leituras nem se apercebam, eventualmente fascinados com um retorno nostálgico a histórias onde era tudo a preto e branco, os "maus" eram os "outros", os "bons" sempre "nós".
Mas isso não serve de desculpa, nem torna a história mais eficaz, menos insultuosa, ou, em resumo, passível de ser apreciada, a qualquer nível. Começa devagar, termina abruptamente, não tem um desenho que a resgate (mas nem Moebius ou Manara seriam capazes disso). Muitas décadas após (por exemplo) Hugo Pratt é confrangedor ver um livro de 2012 a tratar o mesmo tipo de tipo de temas de modo tão retrógrado e maniqueísta, sem parecer dar-se conta. A coisa mais positiva que se pode dizer é que a realização tem competência que baste para evitar que Os piratas do deserto se torne ironicamente relevante graças ao milagre do "kitsch". Não é um elogio. Este é um livro cuja edição verdadeiramente não se entende.”

Começa por dizer que gostaria de dizer alguma coisa positiva, afirmando também que o livro em apreço adopta uma aventura de Salgari, leitura de juventude que não ousa reler para não correr o risco de desilusão, que adiante concretiza nessas leituras (pela menos neste título em particular) como uma escrita de visão claramente colonialista, sexista, classista, xenófoba e outros quindins que deixou em reticências, onde os maus eram os outros, os bons sempre nós.
Qualquer uma das etiquetas é aleivosia. A obra não é colonialista porque não se sobrepõe o poder do colono ao colonizado, nem em uma única parte do texto se nota isso; sexista ainda menos, porque o autor veronês sempre dignificou a mulher na sua obra e, nesta, leva-a a ombrear com os homens no poder de tiro e de decisões; xenófoba, só no cérebro do crítico, que deve ter algum comprometimento de esquerdismo vanguardista ou preconceito racista.
Diz que a história é insultuosa. Para quem? Para ele ou para quem lhe remeteu o livro? Que insulto há numa narrativa baseada num acontecimento real, em que há o estigma do judeu em território muçulmano e há tuaregues que perseguiam as caravanas para as saquear? É isto novidade para quem leu na juventude Salgari e teme ficar arrepiado com a releitura dessas obras?
Diz que o livro começa devagar (se acha devagar um livro iniciar por uma perseguição pelas ruas de uma cidade do Norte de África, com tiroteio, confrontos físicos e ameaças de uma população, a que início rápido se quererá referir o “crítico”?) e que termina abruptamente. Termina quando deve terminar. Ponto final. Quereria ele estender a obra até onde? Não lhe bastou o que leu, se é que o leu?
Diz que a história não tem desenho que a resgate, pois nem Moebius nem Manara eram capazes disso. Este “crítico” vai ao ponto de saber até onde podiam chegar as possibilidades artísticas de Moebius e de Manara. E, sem querer, elogia-me também.
Quando ele diz que a edição não se entende, é porque é curto o seu entendimento ou pretende impor nas edições os seus gostos pessoais; mais ainda, talvez porque o seu estatuto crítico é limitado e incongruente, talvez porque o senhor Ramalho-Santos (com hífen, porque soa de outro modo, mesmo sem respeitar o acordo ortográfico), especializado em biologia reprodutiva, devia ter-se dedicado à sua arte e reproduzir nesse âmbito coisa que valha a pena, nanja esta.
O “crítico” podia cingir-se ao trabalho em si, à adaptação e ao desenho; se tem pruridos contra a escrita e o maniqueísmo de Salgari (o que dirá dos super-heróis americanos, que só vêem a América, os bons), devia deixar ao livre arbítrio do leitor esse julgamento. Enfim, para este marintéu, as gerações do séc. XX que leram Salgari foram alienadas por aquela escrita xenófoba, maniqueísta, retrógrada (se estivesse pessoalmente com ele, dizia-lhe quem era retrógrado) ou pela nostálgica banda desenhada a preto e branco, que o fulano parece depreciar.
Enfim, fez a sua crítica, que legitimamente considero feita, concorde ou não. E não concordo. E tenho o direito de dizer porquê, como e à minha maneira, pois discordo. Aquela crítica sempre dá alguma visibilidade ao título publicado, ressalvado o “sítio” onde a fez, uma vez que, tirando ele e eu, poucos a terão lido. Atrás deste pressuposto, para corresponder à sua “canelada”, dei visibilidade ao “escrito”.
Para se rever o pedantismo do “crítico” biólogo, examine-se com bisturi ou escopro de pedreiro, o seguinte pastel de prosa: “Os piratas do deserto de Santos Costa é uma história de aventuras unidimensional extremamente datada e com todos os clichés imagináveis em termos de caracterização de personagens e desenrolar da narrativa.”
Isto é que é nata de escrita, de puro prazer na leitura "unidimensional"; fiquei completamente derretido, sabendo que a história que eu adaptei se encontra "extremamente datada"; fico verdadeiramente babado com os "clichés" imagináveis para caracterizar as personagens. Antes de desenhar qualquer outro trabalho, terei de reler este naco de prosa, para não me esquecer de caracterizar as personagens, recorrer ao milagre do "kitsch" e datar extremamente o desenrolar da narrativa. Como a gente aprende!...

5 comentários:

  1. Respeito as críticas de todos desde que tenham um mínimo de coerência. Pode-se concordar ou não.
    Neste caso autor da crítica não foi coerente na minha opinião, visto que misturou o livro original com a obra adaptada, e ao fim ao cabo não conseguiu criticar nenhuma. Aliás pelo que me é dado a ver não conhece a obra original. Se queria falar dela teria de a ler e não dizer algumas barbaridades.
    Penso que chegou a ser insultuoso para o autor sem necessidade. Como eu costumo dizer, não é por se fazer uns jogos de palavras bonitos, em que não se consegue saber bem sequer o que a pessoa quer dizer, que se demonstra o saber do crítico.
    Enfim, português para mostrar aos papalvos que existem muitas palavras no português não importando que não se consiga perceber a ideia a transmitir.
    Se ele é biólogo não tenho nada a ver com isso. É crítico de BD no DN e era isso que ele deveria fazer, melhor do que fez neste caso, mesmo querendo dar nota negativa...

    Abraço

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  2. Áhhh, e para que conste aceito que o Ramalho faça a crítica negativa, o meu comentário refere-se simplesmente à incoerência da crítica, e usar palavras que só confundem o vulgar leitor...
    ;)

    Abraço

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  3. Nuno

    Efectivamente, considero que esra crítica foi para além do é suposto considerar-se razoável, designadamente pela forma como o crítico atacou a obra original e, por tabela, a execução da adaptação à BD, os vocábulos acintosos adoptados para achincalhar - como são o caso de retrógrado, confrangedor e insultuosa - termos esses que não costume encontrar nem em críticas do "Mein Kampf" do Hitler.
    Mandei um e-mail ao crítico para lhe dizer o que escrevi aqui e algo mais, tendo ele entretanto pedido autorização (que eu concedi) para contra-resposta no seu blogue.
    Acabei por lhe dizer:
    "Como não nos conhecemos, ficamos todavia com esta impresão negativa: o senhor pela minha reacção; eu, pela sua despropositada e exagerada forma como tratou a crítica ao livro. E é pena. O espectro da banda desenhada portuguesa não ganha nada com estas guerras do alecrim e manjerona."
    Agora, sim, considero ser muito difícil fazer banda desenhada em Portugal. A NÃO SER, COMO É EVIDENTE, QUE COMECE POR PUBLICAR LÁ FORA E, AINDA ASSIM, COM PSEUDÓNIMO ANGLO-SAXÓNICO.

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  4. Fernando,
    Não viras a cara ao enxovalho. Continua assim. Quanto aos críticos, alguns há que debitam opinião conforme a azia do estômago. Repara, em 1907, o musicólogo e crítico de música, mister Henry Edward Krehbiel, escreveu sobre "La Mer" de Debussy:
    "O concerto de ontem à noite começou com muitas manchas impressionistas de cores, esborratadas ao acaso sobre uma paleta de tons, sem qualquer pensamento formal ou objectivo, além do de criar novas combinações de sons [...] Uma coisa apenas era certa: o oceano do compositor era um charco de rãs e algumas das suas habitantes tinham entrado para a garganta dos instrumentos de metal".
    Mais tarde, em 1922, numa segunda apresentação de "La Mer", o crítico resumiu a sua opinião nestes termos: "Um trabalho poético no qual Debussy captou maravilhosamente os ritmos e cores do mar".
    Krehbiel devia estar envergonhado, ao escrever a sua crítica; só esperava que ninguem se lembrasse do que dissera em 1907.
    Há muitos casos assim.
    Os teus argumentos são arrasadores para o crítico "unidimensional", pedante e enviesado, que não gostou da tua obra.
    Um abraço.

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    Respostas
    1. Evaristo

      Krehbiel, consciente ou inconscientemente, retratou-se da primeira opinião. Não será o caso de João Ramalho Santos, nem eu desejo que seja, pois tanto se me dá, uma vez que a caravana continua a passar.
      Por este Portugal de hoje há uma proliferação de críticos que se promovem desta forma, causando perplexidades e castigando autores, para complementarem outras críticas saídas das palmadas nos ombros dos amigos. Há, porém, uma apetência por tudo o que vem de fora, sejam eles telemóveis, fast-food, jogadores de futebol, troikas e o diabo a quatro.
      Neste caso em apreço, o crítico (que eu nunca vi mais gordo, a não ser pela fotografia que ele fez estampar no artigo a torcer o cabelo), atingiu-me a mim, utilizando a obra em causa, de Salgari (ou todas as obras de Salgari), pela simples razão contida na história do lobo e do cordeiro: se não fui eu a torvar a água, foi Salgari que a torvou por mim um século depois de ter morrido.
      Considerar retrógrado o pensamento da época, é considerar retrógrados todos os contemporâneos, passando-se uma esponja por todas as obras então escritas "a preto e branco".
      Este crítico é um homem do futuro, porque até no presente ele já considera retrógrados e maniqueístas todos os que consideram o lado bom (o nosso) e o lado mau(o dos outros). Pessoas destas não estão em democracia, porque a intolerância não lho permite.
      Se Krehbiel "leu" e "ouviu" em Debussy os ritmos e as cores do mar, este crítico acha-me ultrapassado por as ter desenhado (em duas ou três vinhetas) apenas com a cor preta.
      Haja paciência...

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