sexta-feira, 12 de junho de 2015

BANDA DESDENHADA


Página 21 do Mundo de Aventuras 464(1716)
trabalho meu publicado na revista, que mantenho encadernada no seu todo
em vários volumes

Quando iniciei a publicação dos meus desenhos no "Mundo de Aventuras" pensei: "eu faço esta trapalhada de riscos, pernas tortas, rostos patibulares, traços a mais e traços a menos, estou a dar cabo da arte. O melhor é seguir a veia da escrita, que me parece mais natural, e deixar para os mestres - que os havia e os há - a tarefa de contarem uma história com desenhos perfeitos e apelativos".
Porém, com o passar do tempo, e principalmente com a extinção das grandes revistas de BD nacionais, parece que a BD, ao atingir novos meios de difusão, se abastardou no que toca ao traço e ao desenho, o que de certa forma contribuirá para que, de banda desenhada, seja transformada em banda desdenhada.
Continuo a pensar que não será nesta vida que atingirei a perfeição do traço, mas apraz-me ver que há muitos autores que o conseguiram e contribuem para que esta forma de comunicação ainda seja tida por quem gosta de ler e de ver. Porém, infelizmente, aparecem trabalhos em que o desenho, por muitos rótulos pós-modernistas e de vanguarda com que os rotulam, fazem com que se desdenhe e se apresente esta arte como "menor", o que não corresponde à verdade. Escrever e publicar um livro de texto, parece que está ao alcance de qualquer um, mesmo aqueles que não têm nada para contar e muito menos como o fazer. Já o mesmo não se diz da publicação desenhada, a qual não está ao alcance de todos.
Mas...Ah! Engano meu! Quem quer, quem tenha papel e canetas, faz BD, ainda que os arabescos sejam de tal forma disformes que não se consegue distinguir um comboio de uma centopeia ou de um cavalo de um tronco de árvore ressequida. Paradoxo dos paradoxos, logo aparecem os comentadores a "lerem" arte ressumada pelas vinhetas (quando as há), ainda que as páginas tenham duas ou três figuras pinceladas a negro, vendo na "coisa" grande qualidade estética e gráfica, tal a do sobretudo que aquele tal realizador colocou a tapar a lente da câmara para apresentar a Branca de Neve.
Há desenhos que aparentemente são simples e de traço sinuoso, mas têm arte e não são fáceis de executar. Há jovens autores portugueses que conseguem trabalhos de grande beleza sem grande "perfeição" do traço, mas lê-se e vê-se a sua arte espelhada nessas obras. O pior é quando, a par de um desenho "deficiente" a narrativa ainda seja pior, lamechas, vazia, deprimente. Enchem-se prateleiras dessas "coisas", que não são adquiridas, o que leva os livreiros a relegarem para espaços de "vão de escada" essas preciosidades, carreando a chouto outras obras que são de maior valia.
Na net, onde a coisa é de borla, posta-se a riscalhada obtida do scanner e vê quem quer. Com o papel e a tinta, a coisa pia mais fino: a parte tipográfica é a mais simplificada, basta esportular o custo do tabaco e do café de um ano; a distribuição e a venda é que são "o cabo dos trabalhos"!
A coisa vende? Não sei, mas venderá, se pensarmos que os cinquenta, oitenta ou cem exemplares em formato de caderno (que tem a vantagem de não ser ratado pelo Depósito Legal), esgotem pelos amigos, que fazem o favor ao ego do autor. 
Não sou crítico de BD e não me pronuncio sobre obras ou sobre os autores, nomeando estas e aqueles, porque respeito o trabalho de cada um, assim como os gostos de quem adquire. Não contem comigo para entrar nessas andanças, se bem que nada me leva a recear fazê-lo. É uma questão de princípio, pronto!
Não sei se sou dos que contribuem para a "banda desdenhada", se é que esse desdém provenha apenas da qualidade e não da forma. Continuarei a escrever e a desenhar - e a publicar quando e como quero - mesmo que, por vezes, tenha de considerar como Aquilino (que já parafraseei de outras vezes): quis fazer uma gamela, saiu-me um tamanco.


2 comentários:

  1. Caro Amigo Santos Costa,

    Se a valia dos seus trabalhos se medisse tão só por uma "trapalhada de riscos, pernas tortas, rostos patibulares, traços a mais e traços a menos", como escreveu com modéstia e desprendimento, não teriam decerto sido publicados no "Mundo de Aventuras" nem noutros órgãos de imprensa.
    Sou, como já sabe há muito tempo, um apreciador da sua arte, tanto gráfica como literária, e considero que é dos poucos autores portugueses que está à vontade tanto no que desenha como no que escreve, pois para fazer BD é preciso também saber construir uma história, com todos os requisitos que a técnica figurativa exige, e para escrever um texto é preciso fazê-lo correctamente, com respeito pela língua, pela gramática, pela harmonia de estilo, e fazendo apelo à imaginação quando se trata de um romance.
    Ao conjugar estes predicados com a escrita gráfica e a linguagem visual da Banda Desenhada, que não se compara a nenhuma outra disciplina, pois tem de ser mais interiorizada do que “empinada”, pode o resultado não atingir a perfeição, mas cumpre inegavelmente outro desiderato, que é o de chegar aos destinatários, passar-lhes a mensagem, atrair-lhes a atenção e, em paralelo, despertar-lhes as emoções.
    E isso eu garanto, com base na experiência que penso ter acumulado, é algo que Santos Costa, no seu labor contínuo como artesão das palavras e do traço, tem conseguido e continuará, decerto, a conseguir, pois não lhe faltam ideias nem talento para contar uma história com desenhos formalmente apelativos.

    Um grande abraço do
    Jorge Magalhães

    ResponderEliminar
  2. Caro Jorge

    Agradeço-lhe as suas palavras e, mais uma vez, aproveito para lhe agradecer e enfatizar o seu papel na divulgação dos Novos Autores da Banda Desenhada Portuguesa, onde eu e outros tivemos a oportunidade de mostrar os nossos trabalhos.
    Creio mesmo - melhor dizer, tenho a certeza - que foi essa porta aberta que permitiu, no meu caso (e em outros, também o creio), continuar e persistir nesta arte, pois o Mundo de Aventuras, então dirigido por si, constitui um alfobre de desenhadores portugueses de múltiplas características e traço.
    Não é por acaso que coloco o Mundo de Aventuras e a iniciática entrada no meio da BD no topo do curriculum, quando a isso sou instado a fazê-lo.
    Que importa haver talentos, artísticos e literários, se não existirem oportunidades e meios para que eles se instalem ou se mostrem?
    Na altura, não havia internet, os tempos não eram mais facilicados do que são hoje. Revistas como o MA, dirigidas por si da forma como o fez neste particular, foram uma pedrada no charco, na altura em que se via de tudo menos banda desenhada portuguesa.
    Um sincero e eterno obrigado.

    Um abraço
    Santos Costa

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.