segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

IN MEMORIAM - JORGE MAGALHÃES


Faleceu o Jorge Magalhães, de 80 anos de idade, editor, coordenador, tradutor e argumentista.
No meu caminho de ainda jovem autor de BD encontrei o Jorge Magalhães. Era ele coordenador do Mundo de Aventuras e eu porventura um provinciano que foi trabalhar para Lisboa, na altura como funcionário da Direcção Geral das Contribuições e Impostos, na Rua da Alfândega. Levava-lhe uns desenhos gatafunhados a tinta da china, feitos com aparos de canetas, em papel “cavalinho”.
Tinha o Jorge aberto um espaço na revista aos jovens desenhadores de BD portugueses e eu fui tentar a sorte. Presumi que seria recebido – se é que o fosse – por algum editor com cara de pau, majestático, apressado, que me olhasse de alto a baixo para me rachar, nesse mesmo sentido, as ilusões. Não. Apareceu-me um ainda novo Jorge Magalhães, bem parecido, bom conversador, decidido, conhecendo o meio da arte por dentro e por fora, aqui e em além mar em África e em todo o estrangeiro. Atencioso, comparsa, sempre com uma resposta sábia, logo à primeira vista com a aura de pessoa em quem podemos confiar. Quando lá aparecia, entrando pela porta da ruela da Saraiva de Carvalho (onde pairava no ar um cheirinho a café torrado), ele estava sempre disposto a dar dois dedos de conversa, a mostrar-me originais, a falar de publicações futuras. Um sonhador, um idealista arguto que concretizava. No entanto, sempre me pareceu um homem do nosso tempo, tanto do séc. XX como do XXI, atento às mutações tecnológicas e editoriais. Certa vez, em conversa telefónica, quando eu lhe disse que fazia falta um Mundo de Aventuras, ele esclareceu: “Nos dias que correm, já não há no mercado lugar para uma revista do seu género”.
Falou-me do encontro dos desenhadores, argumentistas, editores e amantes da BD que tinha lugar, às quintas-feiras à noite, no Parque Mayer, mais propriamente no restaurante que ficava ao cimo, da Gina e do Júlio, o Júlio das Miombas, que felizmente ainda resiste. E foi lá que nos encontrávamos, um grupo heterogéneo, aberto, falando com conhecimento e atenção às novidades até se esgotar a corda da conversa. Eu e o Jorge até jantávamos lá. Depois, quando se chegava a hora para ele apanhar o comboio no Rossio, descíamos os dois a Avenida da Liberdade, não sem o Jorge parar nos “alfarrabistas” de rua, onde ia deitando os olhos ao que ali se vendia, sempre com espírito conhecedor.
Saí de Lisboa, continuou ele a aceitar os meus trabalhos, sendo que um deles saiu no penúltimo número da revista.
Mais tarde, quando a Maria José, sua filha, com a mesma simpatia e grandeza de alma do pai, decidiu arrojar a publicação de uma BD minha com a chancela da ASA, foi o Jorge que fez a apresentação do desconhecido autor e do livro na Livraria Buchholz.
Encontrámo-nos umas duas ou três vezes mais, mas trocávamos comentários nos respectivos blogs e através de e-mail, sempre recebendo da parte dele os melhores conselhos e alguns elogios que, emboras sinceros da sua parte, eu nem sequer merecia.
O Jorge Magalhães foi – e é, porque a sua obra como autor e editor, perdurará – um Homem de grande entrega, amigo do seu amigo, sensato, activo (mesmo quando a doença o impedia), conselheiro, experiente apreciador e justo na sua forma de ser. Autêntico, dizia o que tinha a dizer e até criticava, fazendo-o com uma elevação de tal maneira simpática, que não feria e tornava os seus elogios com a credibilidade máxima. Lembro-me que um dia, com aquele sorriso de simpatia que o caracterizava, me disse: -“ Ó Fernando (tratava-me pelo primeiro nome), você escreve muito melhor do que desenha”. E tinha razão.
Numa entrevista que me fez para publicar uma BD da minha autoria na revista Mundo de Aventuras, deixou como subtítulo, referindo-se a mim, “Um Exemplo de Persistência”. Nunca esqueci este elogio, porque também tinha razão.
Para além de exímio tradutor, trabalhou como argumentista de muitos desenhadores e deixou a sua marca. O Jorge tinha uma imaginação fértil, em todos os campos da literatura (soube mais tarde que também era um excelente poeta), dominava os conhecimentos da História, replicava os costumes dos quatro cantos da Terra; nos seus argumentos, tanto se entrava num deserto com as suas personagens, como as levava até às planícies geladas dos polos, como as fazia contracenar nas pradarias americanas ou nos bosques africanos; dos seus textos saíam aventuras que prendem os leitores pela sua consistência e trepidante narrativa. Não encontro outro que se iguale.
Uma outra faceta, que mais tarde vim a conhecer, é ter o Jorge especial carinho pelos animais. Compartilhava-o com a companheira, Catherine Labey, sendo esta uma alma cândida e autora companheira da Banda Desenhada. Esta bonomia e dedicação, mais se timbra no facto de tanto eles como eu gostarmos especialmente de gatos e, neste campo, termos até trocado alguma correspondência dolorosa com os animais que se finaram pela mesma lei da vida.
Foi através do Luiz Beira (outro companheiro das tertúlias) que fiquei a saber que o Jorge estava internado, em estado já grave, no Hospital de Cascais. E foi também o Luiz, com voz embargada, que me deu a notícia do seu falecimento. Vieram-me as lágrimas aos olhos. Foi mais uma referência que se perde na lei da morte, embora fique uma estrela que brilha e brilhará no firmamento da Banda Desenhada, um conhecedor, aquele que impulsionou, descobriu e deu a conhecer alguns dos melhores talentos portugueses. E que deixou vasta obra própria, para além da que editou com sapiência e oportunidade.
À companheira Catherine, à filha Maria José Pereira, ao seu genro, e aos dois netos Ricardo e João, deixo o meu pesar, por esta expressa forma de gratidão por aquilo que o Jorge Magalhães fez por mim, por nós, pela arte da escrita e do desenho em Portugal.
Estou-lhe grato, Jorge Arnaldo Sacadura Cabral de Magalhães. Mesmo tendo entrado nos umbrais da noite eterna, que todos havemos de passar, não o esquecerei como Homem, como Editor, como Amigo, bem como a delicada humanidade que o caracterizou, do talento e do companheirismo que nunca claudicaram da sua parte.
Obrigado, Amigo, para sempre.

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